O recuo
- Valeria Pagani
- 30 de mai.
- 5 min de leitura
— Podemos iniciar, doutora? — perguntou o homem por trás da máscara do traje, embaçada pela própria respiração.
— Podemos — respondeu ela aprumando os pés no chão da nave enquanto mantinha os olhos perdidos na escuridão do espaço a sua frente.
O dedo do assistente se aproximou lentamente do botão. Click. Estava feito.
Os olhos de Rodriguez permaneceram fixos no vazio, enquanto uma gota de suor solitária vagava sem rumo pelo seu rosto. O traje parecia mais abafado que de costume.
Lá fora, no silêncio do espaço, nada parecia haver mudado. Mas ela continuou olhando, perdida em suas próprias convicções.
O visor do Relógio Quântico, acoplado ao painel, piscava em vermelho: 00:05:45… 00:05:46… 00:05:47…
A equipe permanecia imóvel, em respeito a ela. Enquanto o tempo, implacável, continuava a avançar… 00:05:58… 00:05:59… 00:06:00…
Até que alguém teve a coragem de declarar o inevitável: — Doutora Rodriguez, parece que não funcionou. — disse um dos assistentes, apoiando a mão no ombro dela.
— Podem voltar aos cálculos. — ela permaneceu imóvel. — Fechem a porta ao sair.
Trinta anos de estudos, trabalho duro e abnegações trilharam o caminho que a levaram ao momento do click. A pergunta que pairava na cabeça de Rodriguez era: Havia valido a pena?
Não tinha filhos e portanto não tinha netos. Não havia perpetuado a espécie, não havia plantado uma árvore e mal se lembrava da última vez que havia pisado na grama. Não havia tido tempo de ler os clássicos da literatura universal, mas sabia de cor passagens inteiras dos livros sobre cosmologia, física e matemática. Se viu, aos 75 anos, em pé em frente ao espaço e todo o esforço pareceu-lhe inútil.
E se tivesse dançado com o Doutor Melendes, naquela festa de final de ano? E se tivesse aceitado o convite para sair de férias com os amigos e pisado descalça na areia da praia? E se tivesse tido tempo para ler e avaliar por si própria se Tolstoi, odiava ou não Anna Karenina, ou se Capitu traiu ou não Bentinho.
Qual seria seu propósito agora? Sem uma cenoura, sem um Nobel, sem rastros genéticos. Nada seu. Sentia que seu tempo havia se esgotado. Seria eternizada por um legado de fracasso.
Enquanto permanecia imóvel em frente a janela da nave um ponto de luz distante pareceu brilhar no espaço distante. Era um brilho novo, nada que tivesse visto antes. Seu coração disparou. Era ele! O ponto ficava mais e mais luminoso a cada instante.
Sentiu então um peso no peito. Um aperto seco, uma dor aguda que irradiava para o braço. O suor escorria agora em fios. Rodriguez cambaleou. O ar parecia não ser mais suficiente para encher seus pulmões. Não podia estar morrendo. Não agora.
Enquanto a dor parecia rasgar o seu peito, o pequeno e insistente ponto de luz transformou-se em um imenso halo pulsante, surgindo no vazio como se o tecido do espaço estivesse sendo costurado por dentro. Crescia mais e mais a cada segundo. Seu coração bombeava mais sangue do que ela podia suportar.
— Não... pode ser... — murmurou.
O ponto tornou-se uma abertura. Um círculo de luz e sombra, dobrando o espaço ao redor como se o universo estivesse se curvando para dentro. Ela tentou sorrir. Finalmente ele estava lá, um enorme e magnífico buraco de minhoca.
Quando o chão, abaixo de seus pés desapareceu, ela não caiu, foi sugada.
Tudo se dissolvia. O laboratório, a dor, o tempo. Era como se nada mais importasse.
Foi tomada por um sentimento de paz, era como houvesse se tornado o próprio vazio. Sentia-se suspensa. Sem pressões, sem expectativas, sem realizações. Eram apenas ela e o nada. Não havia presente, passado e muito menos futuro.
Permaneceu assim por tempo suficiente para a paz tornar-se tédio e o tédio transformar-se em um vazio incômodo. Quanto tempo havia se passado? Horas, dias, milênios? Precisava medir o tempo. Não tinha nenhum instrumento físico para usar como régua, nada de respiração, batimentos cardíacos ou estalar de dedos. Teria que apelar para algo mental. Lembrou-se dos jacarés, e assim prosseguiu: Um jacaré, dois jacarés, três jacarés… um milhão duzentos e sessenta e cinco jacarés. Parou. Para que medir um tempo que não existe? Naquele instante, percebeu que o dom da métrica era inútil.
Continuou buscando propósitos, quando uma inquietação começou a tomar sua matéria, se é que ainda havia alguma matéria naquele nada em que se tornara a sua existência. O que fazer para lidar com o vazio que tomava conta de sua alma?
Equações, pensou ela, animada. Talvez resolver fórmulas mantivesse sua mente ocupada. Tentou reorganizar os termos da Equação de Campo de Einstein mentalmente, o que não era tarefa fácil e iria lhe consumir um bom tempo. Mas se agora, o tecido do espaço não tinha métrica a ser seguida, como deveria calcular?
Pulou para revisão da Constante Cosmológica. Tentava encaixá-la em sua condição atual. Mas o universo não colaborava, naquele instante, não parecia estar em expansão. Então, de nada adiantou.
Por mais que tentasse, as equações não faziam mais sentido, e sua mente acabava insistindo em se voltar para o futuro. Nada mais fazia sentido. A ciência se desfazia. A lógica se escondia. A física estava quebrada.
O que viria a seguir? Tem que haver um “amanhã”. Não pode ser só isso, não pode ser só o vazio, para sempre.
Após esse pensamento achou ter visto uma pequena centelha de luz. Algo havia mudado.
Começou a sentir algum tipo de massa novamente. Se viu flutuando entre véus de poeira cósmica enquanto colunas de gás reluziam magníficas e imponentes em tons de azul, âmbar e púrpura. Nebulosas infantis a cercavam, vibrando como cordas de um instrumento silencioso.
Finalmente o vazio havia dado lugar a um luminoso berçário estelar.
Sentiu, não com o corpo, mas com a matéria, que se desdobrava. Tentou falar, depois gritar. Tentou calcular a probabilidade de se tornar uma gigante vermelha, mas os cálculos ficavam cada vez mais turvos em sua mente.
O hidrogênio em sua essência começava a colapsar, comprimido por uma gravidade que ela não conseguia mais explicar. Cada partícula, que um dia fora carne, agora queimava como combustível. Núcleos se fundiam. Prótons colidiam, liberando energia.
O que antes eram pensamentos tornavam-se plasma. O que antes eram dúvidas, calor.
Sabia, mesmo sem entender, que sua matéria estava se reorganizando, em um recuo, que geraria: primeiro uma protoestrela, para logo se tornar algo muito maior. Mas ela ainda estava relutante, sentia-se confusa e desamparada.
Mas, ao ver que não podia mais resistir ao nascimento, se entregou. E, enfim, brilhou. Agora estava pronta, não era uma gigante vermelha, mas sim uma pequena e pacata estrela, no berçário de Carina. Sentiu-se plena. A existência lhe bastava.
*
Rodriguez foi enterrada com todas as honras merecidas. Em seu funeral choraram mais pessoas do que ela jamais imaginou. Enquanto isso, aos pés do caixão dela, Doutor Melendes confessou, em segredo para um amigo, que havia perdido perdido a oportunidade de dançar com ela, 30 anos atrás.
*
Na parede do laboratório, uma placa prateada exibe as coordenadas precisas da estrela recém-formada no berçário da nebulosa Carina. Em letras garrafais, apenas um nome: Rodriguez-1.