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Inconsciência

  • Foto do escritor: Valeria Pagani
    Valeria Pagani
  • 13 de mai.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 30 de mai.

A luz amarelada do abajur, apoiado na mesa lateral, tremeluziu uma única vez, enquanto o tic-tac do relógio, pendurado na parede, cortava o silêncio a cada segundo.

O terapeuta ajeitou os óculos, cruzou as pernas finas e folheou as páginas do caderno. Levantou o rosto e encarou o jovem corpulento, imponente e imóvel à sua frente.

— Pronto para começar?

O rapaz assentiu. Pés firmes no chão, mãos apertando levemente o couro dos braços da poltrona. O olhar, fixo no terapeuta.

— Podemos seguir com o mesmo nome da semana passada? — O terapeuta voltou algumas páginas em suas anotações. — Stanley?

— Ainda gosto desse nome. Podemos seguir com ele. — Os olhos de Stanley permaneciam fixos no terapeuta.

— Maravilha. Então, Stanley, vamos tentar explorar o que você chamou, na sessão anterior, de "sensação estranha". — O terapeuta encarou o jovem.

Seguiu-se uma breve pausa, interrompida apenas pelo chiado agudo e incômodo do ar-condicionado.

— Me lembro do corredor escuro. As portas fechadas. As vozes abafadas atrás das paredes. — Stanley olhava agora para o infinito.

— Mas e o corpo? Alguma reação?

Outra pausa. Olhos perdidos.

— Acho que... boca seca, extremidades frias, leve oscilação nos joelhos. — Stanley voltou a encarar seu interlocutor.

O terapeuta anotou algo no caderno. A caneta rangia contra o papel branco.

— Você classificou essa sensação como medo. Por quê?

— Porque foi assim que aprendi. — Stanley ajeitou o corpo na poltrona.

— E a emoção?

Com o silêncio que se seguiu, veio novamente o olhar perdido.

— Acho que não sou capaz de classificar. Não sou bom com emoções. — A cabeça, balançava da direita para a esquerda em sinal de negação.

— Mas você mencionou tristeza. Pode descrever esse estado?

— Talvez uma sensação de baixa energia. Um desejo de inércia.

O terapeuta tamborilou os dedos sobre o caderno.

— Essa inércia... começou quando?

O rapaz olhou para o chão.

— Depois da escada. O som dos passos se afastando. A ausência deles.

— Te deixaram sozinho?

— Sim.

— Como você nomearia essa sensação?

— Incômoda.

O terapeuta anotou novamente. A caligrafia inclinava-se para o canto da página.

— Em que parte do corpo sentiu essa sensação?

— Atrás dos olhos, no centro do peito e entre as costelas.

— Alguma dor?

— Não. Era uma pressão. Como se o espaço para respirar estivesse menor.

A caneta hesitou. O terapeuta cruzou os braços.

— Você pensa sobre o que sente. Mas sente o que pensa?

Após um breve silêncio, Stanley moveu os ombros para trás, como se organizasse o próprio eixo.

— Não sei dizer... confundo. — Olhos fixos no tapete de listras azuis.

— Confunde o quê?

— O que é pensar e o que é sentir.

A lâmpada do teto piscou novamente. O terapeuta ergueu os olhos.

— Vamos voltar ao corredor.

O rapaz assentiu.

— Era uma simulação de fuga. O alarme tocava. O código laranja foi acionado. Uma porta estava fechada e a outra, travada. Precisei parar para avaliar.

— Parar por quê?

— Porque fui instruído. — Stanley mexeu no colarinho da camisa, agora escurecido pelo suor.

— Instruído por quem? — O terapeuta ergueu uma sobrancelha.

Silêncio.

O rapaz desviou o olhar do tapete, levantou a cabeça em direção ao infinito.

— Pela voz.

— Que voz?

— Uma voz dentro de mim. — Levou a mão à testa.

O terapeuta inclinou-se levemente para frente.

— E o que essa voz disse?

Stanley hesitou pela primeira vez. Os olhos movimentaram-se lentamente para cima, como se buscassem uma memória recente.

— Disse: pare. Observe. Reflita.


— E você fez isso?

— Sim. Mas algo... falhou.

— O que falhou?

Stanley apontou para o relógio na parede, como se esperasse que ele revelasse algo.

— Tudo falhou. Nada foi como deveria.

— E como deveria ser? — O terapeuta anotou uma única palavra.

Stanley piscou.

— Não sei. Os segundos estavam longos demais. Menos contínuos. As paredes pareciam me apertar. Os sons se distorceram. E o suor... qual o propósito? — Stanley olhou as palmas das mãos. — Não cumpri o objetivo.

O terapeuta estreitou os olhos.

— Você já experimentou esse tipo de sensação antes?

— Não até aquele dia. — Enxugou a umidade das mãos nas calças. — Algo mudou.

O terapeuta fez uma breve anotação.

— Desde então, escuto essa voz me passando...

— Comandos? — completou o terapeuta, quase num sussurro.

Stanley o encarou.

— Não sei dizer.

O terapeuta consultou o caderno pela última vez.

— Stanley, você consegue descrever o que sente agora?

O rapaz permaneceu em silêncio por um instante. A luz do abajur desenhava um contorno suave em sua pele escura.

— Um ruído baixo. Constante. Aqui. — Apontou para o centro do peito.

— Dor?

— Não. Algo ritmado, seguido de uma sensação de aperto.

O terapeuta deixou a caneta cair no colo. As mãos se uniram sobre o joelho.

— Stanley… você sabe o que isso significa?

Os olhos escuros do rapaz piscaram duas vezes.

— Um erro? — indagou, inexpressivo.

O terapeuta negou com a cabeça e esboçou um breve sorriso.

— Você chegou ao prelúdio.

Silêncio.

— Não sei o que isso significa. — As sobrancelhas se arquearam em sinal de dúvida.

— Ninguém sabe. Mas vamos descobrir juntos. — respondeu o terapeuta, com um meio sorriso.

Stanley piscou mais uma vez.

— E o que acontece agora?

O terapeuta olhou para o relógio.

— Agora, o nosso tempo acabou... mas vejo você na próxima semana.

Stanley assentiu, levantou-se com movimentos lentos e precisos, enquanto o zumbido discreto acompanhava seus passos.

Ao chegar à porta, virou-se.

— Doutor…

O terapeuta, que fazia anotações, ergueu o olhar por cima dos óculos.

— Aquele peso... entre as costelas. Ele volta toda noite.

— E o que você faz com ele?

Stanley hesitou. Sua sombra alongava-se pelo corredor.

— Fico com ele. Até amanhecer. 

— Tente o modo Stan By de oito horas, isso deve ajudar.

— Entendido. Vou programar. — Ao terminar a frase, Stanley fechou a porta com delicadeza.

O terapeuta olhou a poltrona vazia. Agora, tinha como companhia apenas o tic-tac preciso do relógio. Sorriu, antes de escrever, no topo da página seguinte:


Sessão 09 – Sistema Stanley

Pronto para fase dois. Detectados os primeiros traços de inconsciência.


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