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DE OLHOS BEM ABERTOS

  • Foto do escritor: Valeria Pagani
    Valeria Pagani
  • 31 de mar.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 30 de mai.


Diário de Alexander Whitmore 12 de agosto de 1933


Hoje, algo extraordinário aconteceu. Após meses de escavações incansáveis no calor implacável de Amarna, um desmoronamento revelou um corredor que há muito parecia esquecido pelo tempo. Descemos lentamente, cada passo ressoando como um eco rumo ao passado. E então, lá estava ela: uma porta selada. A inscrição dizia: "Aquela que é bela está entre os eternos." Presumo que seja Nefertiti. Meu coração quase parou ao reconhecer os hieróglifos.

Ficamos todos em silêncio contemplando a descoberta. Até o deserto parecia prender a respiração para testemunhar aquele momento. Amanhã, iniciaremos a abertura. Mal conseguirei dormir, sabendo que posso estar diante de uma descoberta capaz de mudar para sempre a história da arqueologia.


-


O sol se mostrava como uma fina lâmina de luz no horizonte de Amarna, enquanto a equipe de escavação, chefiada por Rajest Kumar, iniciou a remoção das pedras que selavam a porta. Whitmore estranhou que o material que estava sendo retirado parecia diferente do utilizado no restante da construção. Pareceu-lhe um remendo recente. Após dias de trabalho exaustivo, os trabalhadores cessaram o crepitar das ferramentas, agora, restava apenas, a árdua tarefa de mover a pesada porta. 

Dias se passaram, até que uma pequena fresta foi aberta, libertando uma lufada de ar morno, denso e pesado que foi acompanhada por um som lancinante que cortou o ar. Era como um lamento de milênios de agonia. O ruído era tão intenso e agudo que fez com que todos caíssem de joelhos cobrindo os ouvidos com as mãos. Whitmore, segurou a respiração e conteve o instinto de recuar. Aterrorizados, os trabalhadores se dispersavam pelo deserto, alguns em fuga desesperada, enquanto outros se ajoelhavam, clamando por proteção divina.

Recuperado do choque inicial, Whitmore, alheio ao entorno, só conseguia pensar nos segredos que o aguardavam além da porta. Com a mochila nas costas e a tocha acesa, ignorou o aperto da mão pesada e trêmula de Rajest em seu ombro. Sem hesitar, espremeu-se pela estreita fenda e lançou-se rumo ao desconhecido. Estava tomado pela febre da descoberta.

Ao entrar, Whitmore mal podia acreditar no que via. À sua frente, uma parede lindamente decorada com hieróglifos pintados em cores vibrantes. Em alguns pontos, detalhes em ouro brilhavam sob a luz bruxuleante da tocha. Ele aproximou-se, erguendo a chama revelando a inscrição: “A quem repousa, o medo protege.” Um arrepio percorreu seu corpo, os pelos de seu braço se eriçaram, como se sua pele pressentisse o que estava por vir.

À direita do grande mural, havia um longo e estreito corredor, onde a pouca luz que vinha da porta entreaberta não conseguia penetrar. Whitmore virou-se, abaixou a cabeça, segurou a tocha com força à sua frente e mergulhou na escuridão. Podia sentir seu coração pulsando com força. O teto baixo e o espaço estreito tornavam os movimentos restritos. O suor escorria pelo seu pescoço, formando uma grande mancha no colarinho da camisa. Desde a descoberta da promissora tumba de Nefertiti, havia se tornado um homem cego, alheio ao mundo, estava tomado por uma chama que o consumia e inflamava sua mente com visões de reconhecimento e poder.

O corredor opressor deu lugar a uma ampla câmara iluminada apenas pelo reflexo do brilho dourado do magnífico sarcófago que repousava solene no centro. A peça, ornada com intrincados hieróglifos e incrustações de pedras preciosas, parecia emanar uma aura divina. Espalhadas pelo chão, relíquias intocadas pelo tempo: vasos de alabastro com delicadas inscrições, amuletos em forma de escaravelhos e pequenos estatuários que narravam histórias esquecidas. Em cada lado do sarcófago, dois pedestais ornamentados, sustentando discos solares dourados, louvavam o deus Aton. O reflexo da luz tremeluzente da tocha fazia com que os discos parecessem pulsar.

Whitmore, parou à entrada da câmara, incapaz de dar um passo à frente. Sua respiração era entrecortada, e uma risada sinistra escapou de seus lábios, ecoando pelas paredes. Seus olhos, eram como vaga-lumes cintilando ao brilho frenético da tocha, refletindo a combinação de fascínio e loucura que o consumia. O arqueólogo estava diante de um achado que desafiava seus sonhos mais ambiciosos.

Ao dar um passo em direção ao sarcófago, um som pesado e profundo de pedras sendo arrastadas, acompanhado de gritos abafados e confusos, ecoou na ampla câmara. Whitmore olhou para trás e viu a pequena linha de luz ao fim do corredor ficando mais e mais tênue. Ao entender o que estava acontecendo, foi tomado por um terror súbito. Ele olhou hesitante para o sarcófago e, em seguida, lançou-se pelo corredor em direção à entrada. Ao ver a porta ainda entreaberta, tentou correr, mas tropeçou nos próprios pés e caiu ao lado da última linha de luz, que se apagava lentamente até desaparecer, silenciando os gritos dos trabalhadores do lado de fora. Levantou-se com dificuldade. As mãos trêmulas recolheram a tocha que jazia caída no chão. Iluminou a porta. A saída havia desaparecido.

O silêncio que se seguiu foi opressor, Whitmore podia ouvir sua própria respiração. Tirou um lenço do bolso e enxugou o suor do rosto. O cheiro pesado de óleo envelhecido impregnou o ambiente. Desorientado, andou cambaleante pelo corredor de volta à sala do sarcófago. Precisava encontrar outra saída. Mal teve tempo de examinar a câmara, um redemoinho de vento tomou conta do espaço. Whitmore protegeu o rosto com o braço, a areia que antes dormia calmamente no chão agora chicoteava sua pele. A tocha lutava para se manter acesa, mas finalmente cedeu aos apelos do vento e se apagou.

Com a escuridão veio a calmaria. O silêncio recobrou o seu lugar. Whitmore abriu os olhos o máximo que pôde, esforçando-se desesperadamente para enxergar algo, mas a escuridão impenetrável o envolvia por completo. Tateou o ar. Era tarde demais, estava completamente envolto em trevas. Sua respiração curta e entrecortada era o único som que se podia ouvir, até que, uma brisa fria acariciou sua pele, trazendo um calafrio involuntário. Em seguida, um som distante, fez cada pelo de seu corpo se eriçar. Era um ruído inconfundível, era como unhas longas raspando na pedra.

─ Quem está aí? ─ gritou Whitmore, com a voz entrecortada e as pernas trêmulas.

A resposta veio em forma de um toque. Algo seco e áspero, como papel velho e ressecado, roçou seu braço. Ele gritou de pavor, enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto. Recuou instintivamente, tropeçando em alguma das relíquias espalhadas pelo chão. O som de seu grito ecoava pela câmara, multiplicado como em um grande caleidoscópio musical.

Sentia seu peito apertado, a dificuldade para respirar fazia com que sua garganta ardesse. Havia perdido completamente a noção dos sentidos. Encharcado de suor e com o  corpo trêmulo, mantinha uma mão estirada tateando o escuro enquanto a outra açoitava o ar com a tocha apagada.

Sentiu uma respiração fria atrás de si, recuou e passou a mão no seu pescoço como que tentando espantar um inseto, a essa altura Whitmore estava totalmente imerso em seu mundo de pânico, chorava como uma criança em meio a um pesadelo. Andou de costas até encontrar a parede da câmara atrás de si, cobriu a cabeça com os braços e foi escorregando as costas na parede até encontra o chão.

Um guincho agudo e penetrante, pareceu vibrar dentro da cabeça de Whitmore, como se a própria escuridão ganhasse voz. Whitmore ofegava. Estava com a mente tomada por uma névoa de confusão. Não conseguia encontrar clareza para pensar em uma saída. Um novo grito agudo cortou o ar, deixando para trás, um zunido desnorteante nos ouvidos de Whitmore, algo além das calças molhadas aconteceu, uma leve vibração fez o chão tremer. A sensação ressoava nos ossos, como uma nota abafada. Whitmore abriu os olhos em meio ao vazio, tentava compreender o que estava acontecendo.

O grito agudo da entrada. A lembrança voltou à sua mente como um raio. Algo era acionado a cada vibração provocada pelos gritos. Tateando às cegas, Whitmore rastejou pela sala, sentindo o ar frio se deslocando ao seu redor, a coisa ainda o rodeava, agora entendia o significado da frase “Morrer de Medo”, precisava manter a calma. 

Passou as mãos pelo chão frio e tateando sentiu algo diferente, não era de pedra e sim de metal. Lembrou-se dos pedestais com o disco solar ao lado do sarcófago. Estava usando o mastro como apoio para se levantar quando deu um leve empurrão e a vibração voltou a percorrer a câmara. Ele hesitou, mas decidiu aplicar mais força. O som se intensificou, reverberando pelas paredes.

Algo se mexeu. Ele ouviu um som estridente de pedras deslizando e sentiu o ar  ficando menos denso dentro da sala, agora sentia uma brisa viva. Do outro lado da sala, onde antes só havia silêncio, uma rachadura na parede deixou escapar uma brisa fria e o som distante de areia sendo deslocada. "É isso…" sussurrou Whitmore para si, sentindo uma ponta de esperança. Rastejou em direção ao ar fresco, tinha certeza que aquele era o caminho para a liberdade, mas o entusiasmo o fez esquecer que não estava sozinho.

O som da criatura se arrastando atrás de si fez com que Whitmore acelerasse o rastejar, a criatura rosnou baixinho logo atrás de Whitmore. Era algo lento, metódico, e o som de garras sobre a rocha, desorientava Whitmore, que tentava se concentrar em encontrar a fonte do ar fresco que o levaria a saída. A criatura fez um som áspero, quase como o som que se espera que um dragão faça ao lançar suas chamas, mas em vez de fogo o que a criatura exalou foi um forte cheiro de natrão e betume.

─ Você não vai me deter. ─ Murmurou Whitmore com a voz trêmula mas decidida, enquanto continuava a sua busca cega.

Finalmente sua mão encontrou a parede oposta e nela uma fenda, Whitmore tateou a abertura estreita, que parecia promissora. Ele espremeu o corpo pelo espaço apertado, sentindo as pedras raspando sua pele, enquanto a respiração fria da criatura atrás dele se aproximava. O som de algo agudo e duro tocando o chão seguiu-o como um predador encurralando sua presa.

A rachadura levou a um corredor menos estreito, onde o ar era mais fresco.  O som da criatura atrás dele cessou. Whitmore se permitiu uma breve pausa para recuperar o fôlego. Ele percebeu que o chão era inclinado para cima, e que, se seguisse aquele caminho, poderia chegar a um nível superior da construção. Ao retomar a subida, Whitmore sentiu novamente o cheiro nauseabundo ao seu redor, a criatura enfiou suas garras no tornozelo de Whitmore, que lutava para libertar-se enquanto a criatura soltava ganidos esganiçados.

Whitmore chutou com força, desesperado para se livrar do aperto. As unhas da criatura rasgavam sua pele, e a sensação da mão áspera e sem vida o enchia de um horror visceral. Só podia ser uma daquelas almas antigas e corrompidas que habitavam as lendas locais, as mesmas lendas que ele costumava desprezar, rindo alto da ignorância dos crentes. Os ganidos ecoavam pelo corredor. Whitmore chutou com o máximo de força que lhe restava, acertou em algo, ouviu a criatura guinchar com um tipo de lamento e finalmente conseguiu libertar seu pé das garras do monstro.

Sem hesitar, rastejou pelo chão inclinado, ignorando a dor excruciante no tornozelo. Cada passo fazia com que seus joelhos doessem mais e mais, não podia vê-los, mas sentia o tecido das calças molhado, deviam estar em carne viva. Não podia perder tempo, travava uma batalha contra o medo, o cansaço e a desorientação. Se forçava a seguir em frente, guiado apenas pela inclinação ascendente do chão e a vontade inata do ser humano de sobreviver. Whitmore tateou a escuridão até que seus dedos encontraram uma borda, ao investigar melhor o lugar pareceu-lhe algum tipo de escada.

Whitmore subia lentamente, degrau após degrau tentando prever cada movimento na escuridão total. Cada degrau era uma pequena vitória, mas o arrastar atrás dele havia recomeçado. Podia ouvir um som rouco, como um respirar entrecortado misturado a um rosnado baixo. Tentou acelerar a subida, seu pé escorregou, mas conseguiu segurar-se a tempo.

Respirou fundo, o ar se tornava mais fresco a cada degrau. A esperança renasceu dentro dele, alimentando suas forças. Subiu até não encontrar mais degraus a sua frente. Aparentemente, havia chegado ao topo da escada. O cheiro de betume estava ficando insuportável, definitivamente a criatura havia ganhado terreno e avançava em sua direção.

Whitmore tateou trêmulo em busca de algo que lhe desse um sinal de para onde seguir. Sua mão encontrou algo de metal, uma saliência no chão que lembrava uma alavanca. Sem saber o que esperar, ele puxou o dispositivo no exato momento que a criatura segurou o seu sapato. Whitmore puxava o pé na tentativa de libertar-se sem saber o certo onde estava e se estava próximo ao buraco da escada, havia perdido a noção espacial.

O arqueólogo se contorcia e chutava, o que quer que fosse que tinha agarrado ao seu pé, enquanto um ruído áspero de pedras raspando a areia encheu o ar ao mesmo tempo que uma uma fina lâmina de luz nascia de uma fresta que se abria lentamente no teto. A luz, mesmo que fraca, fez os olhos de Whitmore arderem, cobriu o rosto com o braço enquanto puxava o pé que havia se soltado do sapato que a criatura segurava.

O feixe luz foi tornando-se cada vez mais luminoso a medida que a passagem se abria e parece ter afetado profundamente o ser, que emitia guinchos desesperados que se tornavam mais abafados conforme ela se afastava. Whitmore teve vontade de olhar para trás, mas decidiu não arriscar, afinal, escapar daquele lugar era mais importante. Enquanto Whitmore subia, com dificuldade, pela abertura, seu corpo dolorido, coberto de suor, poeira e sangue, parecia ter esgotado as últimas forças.

Ao conseguir sair completamente pela abertura ouviu os guinchos ensandecidos da criatura que ainda mostrava sinais de vida. Sem pensar, apanhou uma pedra solta ao seu alcance e golpeou o mecanismo que sustentava a abertura. Um som seco de ruptura precedeu o fechamento da passagem.

Whitmore rolou para longe enquanto a abertura se selava abafando os últimos ganidos da criatura. Deitado no chão áspero, ele respirava com dificuldade, o corpo exausto e trêmulo. Tudo era silêncio, exceto pelo pulsar de seu coração em seus ouvidos. Olhou para cima e viu brilho tímido do amanhecer dissolvendo os tons de azul profundo, e o vento do deserto soprou, congelante sobre o seu rosto. Whitmore sentou-se, aos poucos a claridade mostrou os profundos cortes em seu tornozelos e as calças encharcadas de sangue nos joelhos. Respirou fundo e deixou que o frio da noite limpasse a poeira que turvava sua mente. Lembrou das mãos de Rajest que tentaram segurá-lo. Ele não ouvira. Não quisera ouvir. Whitmore percebeu que chegou a ser tão sombrio quanto a criatura que acabara de enfrentar.

Com esforço, levantou-se, sacudiu a poeira de suas roupas e começou a caminhar em busca de uma escada para descer do topo da construção. O sol se mostrava, mais uma vez, como uma fina lâmina de luz no horizonte de Amarna, só que desta vez Whitmore teve tempo para apreciar o espetáculo.


Valeria Pagani


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