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LEMBROU DE ESQUECER

  • Foto do escritor: Valeria Pagani
    Valeria Pagani
  • 10 de jun de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 16 de mar

Passado um ano, a dúvida ainda ecoava em seus pensamentos. Éramos felizes. Por que alguém partiria se estava feliz?

Antônio abriu as portas do que havia sido o pequeno santuário dela. Os vestidos de paetê já não refletiam mais seu brilho. As plumas não faziam mais cosquinhas. Os sapatos, que eram tantos, já não pulavam para fora em um ritmo frenético até que o escolhido fosse encontrado. Nada mais de brilho. Nada mais de cor. Nada mais de luz. Nada demais. A inexistência de Sara era quase visível, sua ausência, agora, era uma mancha negra e viscosa que transbordava e inundava o quarto todo. Antônio respirou fundo. Podia sentir o perfume dela no ar, ficou sem respirar por alguns segundos tentando manter Sara dentro dele, não conseguiu, expirou. Fechou as portas do velho guarda-roupas com cuidado para não deixar escapar as poucas memórias que ainda lhe restavam.

Antônio andou em direção à cama, abriu o lençol, deitou na metade que lhe pertencia. A artrite se fez lembrar. Pegou o copo com água na mesa de cabeceira. Olhou por alguns segundos o porta retrato ao seu lado. Lá estava ela, banhada de sol, feliz e cheia de vida ao seu lado. Voltou a si. Abriu a caixinha de pílulas onde guardava um punhado generoso de remédios, todos minuciosamente separados nos dias da semana, havia remédios de todas as cores e tamanhos, só não havia nenhum para curar o vazio. Tomou a água. Apagou a luz. Fechou os olhos. Adormeceu.

Acordou com o sol invadindo o quarto. Cobriu os olhos com o braço. Sara sempre fechava as cortinas. Coçou a cabeça, bocejou. Sentou na cama. Colocou os chinelos e partiu para mais um dia. Tomou seu café. Podia ouvir o sussurro das ondas dançando na areia. A maresia se infiltrava em todos os cantos, como um convite ao oceano. Abriu a porta e pode ver a imensidão do mundo. A brisa do mar sempre o reanimava. Ouviu as gaivotas. Trancou a porta e saiu em direção à faixa de areia.

Haviam comprado a casa depois da aposentadoria. Era o sonho de Sara, morar em frente ao mar. Agora Antônio sonhava sozinho. Seguiu sua marcha de costume rumo ao mirante. Fez um aceno de cabeça para o rapaz que corria com o cachorro. Era engraçado aquele cachorro. Sempre carregando um graveto na boca. Antônio se distraiu encaixando seus pés nas pegadas que alguém havia deixado na areia. Que pés pequenos. E assim foi. Recolheu conchas. Acenou para estranhos. Ouviu as ondas. Sentiu a água em seus pés. Sempre em frente sem olhar para trás, até que algo chamou sua atenção. Em meio a areia, um objeto brilhante refletiu o sol. Andou em direção à luz. Abaixou-se apoiado nos joelhos. Ah! Era só um caco de vidro. Um perigo! Podia cortar o pé de alguém. Guardou no bolso.

Sentiu uma sombra crescendo sobre ele. O sol estava sendo encoberto por alguém. Colocou a mão na frente do rosto tentando distinguir a figura. Caiu sentado na areia. Olhou para cima. O sorriso era inconfundível. Ela estendeu a mão e o ajudou a levantar. “Sara?!” Antônio sentia suas entranhas reviradas. Sentiu-se repleto de amor, sentiu-se aquecido, preenchido, feliz. Ele abriu os braços e envolveu a esposa num abraço sincero, como se desejasse que aquele momento durasse por toda a eternidade. Nada mais importava. Sara estava de volta. Conversaram por horas. Ele perguntando. Ela respondendo. Ele acariciando. Ela sorrindo. Ele amando. Ela retribuindo. Andaram até o mirante. “Boa tarde seu Antônio!” disse o vendedor de água de coco, Antônio respondeu com um aceno de mão. “Esse rapaz é sempre muito simpático, não é amor?”. Sara sorriu. Começaram a fazer o caminho de volta. Sara se despediu, disse que não podia ficar, mas se encontrariam todos os dias nas caminhadas. Antônio relutou, abriu a porta. Ao olhar para trás viu a figura de Sara distante, andando em direção à praia.

Antônio estava extasiado. Pleno. Aéreo. Revigorado. Mal havia percebido que já eram as quatro da tarde. Preparou algo rápido para comer. Se enfiou em algum livro qualquer, precisava acelerar o tempo, na varanda da casa a brisa começava a ficar fresca. Queria encontrá-la novamente no dia seguinte. As horas se arrastaram, Antônio teve a sensação de que o relógio da sala se derretia como nos quadros de Dalí. Tomou seu banho. Abriu o lençol do seu lado da cama. Havia esquecido de repor alguns dos remédios na caixinha. Só uma vez não vai fazer mal. Tomou os remédios que restavam. Mesmo tomado pela ansiedade, adormeceu.

Acordou com o sol invadindo o quarto. Era hora do encontro. Colocou o short. Esqueceu os chinelos. Não tomou café. Saiu em direção à areia. Como combinado, lá estava ela. Repleta de sol. Andaram juntos. “Bom dia Seu Antônio!”. Disse o homem que corria com o cachorro. O cachorro ainda corria engraçado, com graveto na boca, mas Antônio não percebeu, estava repleto de Sara.

No meio da tarde Antônio voltou para casa. Se despediram, ele beijou a mão da esposa, a pele dela ainda parecia tão macia quanto ele se lembrava. Amanhã seria um novo dia. Colocou a chave na porta e entrou sem olhar para trás. Comeu um pedaço de queijo velho que encontrou na geladeira. Do banho, nem lembrou. Colocou o pijama. Esticou o lençol. Esqueceu de pegar água. Não ia adiantar mesmo, já não tinha mais remédios na caixinha. Adormeceu.

Os dias foram passando, repletos de amor e plenos de felicidade. Mas, estar com ela cobrava seu preço. A barba foi crescendo. O banho sendo esquecido. A artrite lembrada. A fome ausente. Mas, a alegria de ter Sara por perto amenizava tudo. Vivia para caminhar. Vivia para amar. Vivia por ela.

O toque do celular ecoou na casa vazia. Não levava mais ninguém para os passeios, só Sara. Em um desses dias, ao voltar do seu passeio, encontrou a filha esperando por ele. O que estava acontecendo? Não atendia mais o celular. E esse estado lamentável? Era só pele e osso.

“Encontrei sua mãe.” Antônio disse a frase com o mesmo tom tranquilo de quem dá uma notícia corriqueira. Impossível. Retrucou a filha com um olhar assustado. Precisava consultar um médico com urgência. Médico marcado. Exames. Ressonâncias. Exames. Tomografias. Exames. Consulta. “O Sr. Antônio apresenta um quadro inicial de Demência Senil.” O médico disse assim, de forma direta e clara, como se fosse uma simples gripe. A filha se desesperou. Antônio não acreditou. Não podia ser. Estava em perfeito juízo. 

Foi muito claro. Não iria morar com os filhos. Tinha sua casa. Suas coisas. Seus compromissos. Nem pensar. E assim, sua vontade foi feita. Ficou em casa. O filho pagava uma enfermeira para cuidar do pai, a filha pagava os medicamentos e visitava todas as semanas. Com o passar dos dias, a medicação o trouxe de volta à realidade. Sara começou a faltar aos encontros. Passado algum tempo já não caminhava mais ao seu lado. Sem ela por perto, a sombra viscosa da solidão estava tomando conta da casa novamente.

Antônio passava os dias vagando pela casa. A artrite já não doía mais. Tinha quem lembrasse do horário dos remédios. A enfermeira era o seu algoz. O lembrava da hora do almoço. Do jantar. Do banho. E ele, só queria esquecer. Certo dia, vendo o vaivém das ondas, decidiu que preferia não lembrar. Bolou um plano. Guardaria os remédios na boca e quando o algoz não estivesse por perto, cuspiria. Plano posto em prática, resultado mais que satisfatório. Começou a esquecer. Suas caminhadas ficaram mais longas e Sara voltou a lembrá-lo de como era ser feliz. Ela, sempre cheia de sol. 

Os médicos trocaram os medicamentos, tentaram novas terapias, novas enfermeiras. Mas, nada de lembrar. E assim foi, de esquecimento em esquecimento, com as enfermeiras lembrando por ele. No final, Antônio não se lembrava de nada, filhos, netos, muito menos do cachorro com graveto. Mas de uma coisa ele não esquecia. Do amor que sentia por ela. Pediu para que fosse colocada uma cadeira ao lado da cama. A cadeira para Sara. Após cinquenta anos de casados, quem melhor para cuidar dele do que ela?

E assim ficou, sentada na cadeira. Conversou com ele, lhe deu carinho, amor e atenção. Segurou a mão dele até o último suspiro. Segundo contam os filhos, horrorizados, Antônio morreu ausente, mas com um sorriso no rosto.


Valeria Pagani


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