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O choque

  • Foto do escritor: Valeria Pagani
    Valeria Pagani
  • 10 de fev.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 30 de mai.

Me ajeitei na cadeira de praia, remexi a comida do Godofredo no pote ao meu lado, mas ele, como todo bom gato, me ignorou e ficou sentado na beirada do prédio olhando para o horizonte, acho que ele, assim como eu, não queria perder a visão do impacto, afinal, apreciar um espetáculo como esse era algo único. Finalmente, depois de três meses de loucura, caos e agonia a Lua estava caindo sobre a Terra.

Você deve estar pensando, que coisa ridículo, implausível ou improvável, pois é, eu também achava o mesmo. Quando vi a notícia pela primeira vez, minha reação foi rir e rolar o feed, mas aqui estou eu, no topo de um prédio, vendo o impossível acontecer. As chances de um cenário como esse acontecer, eram mais remotas do que eu ganhar cem vezes seguidas na loteria. Não quero dar spoilers, mas não ganhei dinheiro algum, mas sim a visão de um roteiro apocalíptico de um filme de baixo orçamento. Quem disse que Deus não joga dados errou feio.

─ Godofredo, você já parou para pensar que, talvez, estejamos assistindo à extinção da humanidade? ─ Godofredo miou, me olhou, desceu do muro e veio em minha direção.

─ Digo talvez, porque somos uma espécie persistente, nos gostamos de viver. Eu não diria que vamos ter o privilégio de assistir à extinção de toda a vida na Terra. As baratas com certeza vão sobreviver. Elas sempre sobrevivem. ─ Ajeitei Godofredo no meu colo, ele se aninhou como se eu fosse capaz de mante-lo seguro. Acariciei seu pelo.

─ Que horas são? ─ Olhei no relógio. ─ Vinte duas horas. Segundo as previsões ainda temos alguns minutos, dá tempo de fumar um cigarro.

Peguei um cigarro. O último. Puta merda! Se esse negócio demorar mais do que o previsto estou ferrado. Dei uma longa tragada, tentei absorver cada miligrama de nicotina, sem remorso, agora não corria mais o risco de contrair câncer. Era tarde demais.

A noite estava fria, mas, por algum motivo que só os astrônomos entenderiam, começava a soprar uma brisa morna. A Lua parecia absurdamente grande, com detalhes visíveis a olho nu, peguei meu velho binóculo empoeirado: crateras, montanhas, sombras. Que coisa linda! Abaixei a visão e com a ajuda do binóculo, pude ver uma rua ao longe, pessoas corriam, dois carros colidiram, um caminhoneiro tentava passar, a todo custo, em um espaço improvável para o tamanho do caminhão. Uma mulher carregava duas crianças pequenas no colo e arrastava a outra pela mão. Onde estariam tentando chegar? Seriam pais e mães de família tentando chegar aos seus entes queridos? Acariciei Godofredo que se esticou todo.

Joguei a bituca do cigarro fora. Olhei para o maço de cigarros amassado no chão. Olhei para o relógio. Desde o começo dessa improbabilidade eu já havia passado por todos os estágios emocionais que uma pessoa pode experimentar. Negação, descrença, pânico, pedido de socorro divino e depois de tudo, cheguei onde estou. Cheguei a conclusão que, não tenho muito a perder.

Olhei para Godofredo que dormia, tranquilo. Será que se eu tivesse filhos faria de tudo para protegê-los, mesmo sem esperança alguma de que conseguiriam sobreviver? E se eu tivesse uma esposa a abraçaria forte e diria que vai ficar tudo bem? E se eu tivesse irmãos, pais ou até mesmo um tio distante, estaria sofrendo por eles neste instante derradeiro? Provável. E se Deus existisse, eu me sentiria reconfortado? Me sentiria mais amparado? Estaria implorando para que ele me levasse para a luz enquanto rezava em silêncio? Talvez. Mas agora nada disso importava. Os sonhos haviam se reduzido a lembranças de um futuro sem possibilidades.

Eu esperava me casar. Em meus sonhos eu deitaria ao lado de uma esposa amorosa e faríamos amor, em silêncio para não acordar as crianças e pela manhã eu serviria o café na cama para ela, depois sairíamos com nossos dois filhos para passear e a nossa filha deixaria o sorvete cair e eu secaria suas lágrimas com a barra da minha camiseta e diria que vai ficar tudo bem e ela acreditaria, afinal eu sou o seria o seu pai. Se eu tivesse conhecido meus pais e eles estivessem aqui, tenho certeza que eles me abraçariam e eu acreditaria que vai ficar tudo bem. Abracei Godofredo que me empurrou com as patinhas.

─ Como seria ter tudo isso, Gôdo? ─ Ele se livrou do meu abraço e se ajeitou no meu colo novamente.

─ Graças a filha da puta da Lua nunca vou saber como seria. ─ Olhei para o horizonte, a luz da Lua, forte como nunca, iluminava a noite como se fosse um dia claro de verão.

─ Pois é Godofredo, e eu achei que aos trinta anos já teria uma família. Errei nos cálculos. ─ Um sorriso tristonho surgiu no meu rosto.

─ Enfim Gôdo, os últimos meses me ensinaram que não adianta lament…

Um som lancinante me fez tampar os ouvidos. Godofredo correu. Consegui alcançá-lo e o segurei firme, coloquei-o dentro do meu casaco enquanto ele se debatia. Fechei o zíper com ele dentro. Olhei o relógio, havia chegado a hora. Para minha surpresa podia sentir o meu coração ressoando em meus ouvidos. Após o segundo grande estrondo senti náuseas. Apertei o Godofredo junto ao meu peito. Minhas mãos tremiam.

Procurei por um lugar seguro para escondê-lo, algum lugar de onde não pudesse fugir. Rangidos estridentes vindos das profundezas eram o sinal de que a Terra se contorcia, enquanto ao longe, jatos de lava rasgavam o ar como fogos de artifício. Raios rasgavam o céu, seguidos de trovões que faziam o meu peito tremer. Os meses de preparo não haviam servido de nada. Meu instinto de sobrevivência falava mais alto. Eu buscava, ofegante, por um esconderijo, me sentia como um coelho em um campo de caça. Segurei Godofredo com força, pude sentir as unhas dele rasgando a pele da minha barriga, o coitado se debatia tentando fugir do casulo que eu havia feito para ele no meu casaco. Vi uma pequena porta que dava acesso ao maquinário do elevador, corri na direção dela.

─ Vai passar amigo. ─ Puxei a porta, estava destrancada, mas eu lutava com a força do vento que havia tomado proporções nunca vistas, uma mão na maçaneta e a outra protegendo Godofredo que não parava de me arranhar.

Conseguimos entrar. Olhei pelas frestas da porta veneziana e pude ouvir ao longe portas batendo, vidros estilhaçando, pessoas gritando, vi carros e árvores sendo alçados ao ar pelo vento, a porta se balançava e o vento que entrava pelas frestas segava meus olhos. Se existisse um apocalipse aquele, certamente, seria o cenário perfeito.

Minha garganta estava seca e a respiração cada vez mais difícil. Godofredo se espremeu, se esticou, me arranhou fundo e conseguiu se livrar do meu casaco.

─ Godofredo! ─ Minha voz, entrecortada mal saia da minha garganta.

Tateei na escuridão do cubículo. A luz da Lua, cada vez mais forte, criava feixes luminosos que se misturavam à poeira trazida pelo vento. Eu não estava preparado para morrer. Acho que ninguém estava. Por quê? Com tantos lugares possíveis no universo, aquele planeta errante tinha que passar perto de nós e desestabilizar tudo?

Finalmente o achei, lá estava Godofredo, encolhido em um canto, eriçado. Estiquei a mão na direção dele, consegui apanhá-lo, senti o seu corpo frágil tremendo junto ao meu. Estávamos em sincronia. Estávamos igualmente apavorados. Eramos só dois animais que não entendiam tudo aquilo, só queríamos sobreviver. Coloquei-o dentro do meu casaco novamente, tentei tapar os seus ouvidos com a minha mão. As lágrimas brotaram dos meus olhos sem meu consentimento.

Ouve um breve silêncio, um instante de falsa esperança. Me agarrei à ideia absurda de que talvez tudo fosse um erro, e que de alguma maneira teríamos um final diferente. Olhei pelas frestas da veneziana. Me enganei.

O mundo rugiu novamente. Estrondos e tremores sacudiram cada osso do meu corpo. O ar vibrou como se a realidade estivesse se desfazendo. Um som insuportável ecoou. Abracei Godofredo com força. Seu pequeno corpo trêmulo se moldou ao meu peito. De alguma maneira ele sabia que aquele era o abraço final e se entregou sem relutar, pude sentir o seu coração. Demos o último suspiro, juntos, enquanto uma grande lufada de ar fervente trouxe com ela a calma.


Valeria Pagani

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