DESCANSE SEM PAZ
- Valeria Pagani
- 10 de jun. de 2024
- 10 min de leitura
Atualizado: 16 de mar.
Enquanto olhava para o retrato que o marido, acabara de trazer do retratista, um bichinho fez morada em seu juízo. Quem era aquela mulher sentada no canto da foto? Em que momento havia se tornado aquela figura desbotada, amarelada e sem vida? Olhou de lado e deu de cara com seu reflexo emaranhado com a do Espírito Santo no quadro que enfeitava a sala de jantar. Meu Deus! Voltou para a foto, viu seu arremedo de sorriso, precisava sorrir mais. Mas como? Tentou sorrir. Coisa de gente doida ficar rindo sozinha e sem motivo. Por que o sorriso custava a aparecer? Acontecia rara vez e era logo silenciado pela mão, ligeira, ávida por cobrir a boca. Que graça tem não ter dentes? Ah! Deve ser isso!
Guardou a família perfeita no bolso do avental, protegida, escondida. Passou o pano de prato sobre a mesa de jantar de madeira de lei para tirar as marcas de suas digitais. Linda essa mesa. Trazida de carroça pelo próprio Ernesto. O pano de prato foi para o ombro tão rápido que nem se viu pista, estava perdendo tempo com bobagens e as panelas ainda estavam vazias. Ouviu o choro do bebê. “Catariiiiiiina, vai ver seu irmão filha!”. Queimou o dedo no ferro quente do fogão. Colocou mais lenha, precisava de mais calor, mais tempo, mais ar. Se abanou com o avental.
O bicho roedor de pensamentos ainda a carcomia. Como podia ter se transformado em uma mulher feia e insossa da noite para o dia? Ferve. Remexe. Carcome. Regurgita. A figura de Ernesto, lhe parecia tão bem na imagem, sempre alinhado, sempre perfumado. Um bom homem. Sempre com tecidos novos para as crianças. Sempre com caramelos e brinquedos. Um bom pai. Quando sobrava um trocado trazia um corte de tecido para ela. Um bom marido. Fumega. Sua. Remexe. Carcome. O bebê chora. “CATARINAAAAAA, PELAMORDEDEUS, criatura, vai ver seu irmão!”. A voz de Chica ecoou em meio ao choro e a balbúrdia das crianças. E o bichinho roedor de pensamentos ainda pinicava.
Mesa impecavelmente posta para nove. Bateu na testa como quem se pune por esquecer, pegou outro prato. Conta, conta, conta… dez. Servir Ernesto só a cada quinze dias às vezes fazia com que Chica se esquecesse que ele existia. O trabalho era numa lonjura sem fim, por isso preferia não ter que ir e vir todos os dias, ficava cansado demais.
Chica e os filhos tocavam a vida, esquecendo e lembrando a cada quinzena. Após esperarem pelo pai por mais de uma hora, Chica liberou os filhos. Que o banquete cacofônico tenha início. Um que não come, o outro que tudo come, pedaços imensos de algo indistinguível sendo devorados sem piedade. “Mastigar é para os fracos” - gritou Ruggiero. Enquanto Catarina ajuda a mãe com os pequenos, Alberto, o mais velho, parece alheio a tudo aquilo, cabeça enfiada em um livro qualquer. Igual ao pai, parece que nem está aqui. Cabeceira da mesa ainda vazia. Onde se enfiou esse homem? Na outra ponta da mesa, ocupada por dois, o leite era sugado do peito de Chica com a preguiça de quem quer dormir, enquanto ela tentava comer com o braço que lhe restava. Em um rompante, a mãe largou o garfo sobre o prato. “Come direito menina.” Tapa na nuca. Lucila, baixou a cabeça atordoada, e engoliu o choro com a comida, mal sabia ela que aquilo era um breve treino, alguns anos depois, engoliria o choro, mas agora com café.
Passado o inferno do almoço, os pequenos correram porta afora. Catarina e Carlota lavavam e enxugavam a louça, enquanto Alberto, imerso em alguma história, onde homens eram heróis e não mocinhas que precisam lavar a louça, se retirou em silêncio.
Lá pelas três da tarde o vento se fazia sentir, friozinho como tinha que ser em pleno julho. Chica havia terminado com os afazeres da cozinha. Respirou fundo e derramou lentamente o café na pequena xícara desbotada, daria uma esquentada. Não gostava de usar a louça das visitas de Ernesto. Deus me livre, vai que quebra. Os olhos fixos na fumaça que subia. Tomava seu café em pé, na beira da pia, para não perder tempo. Mas, não sabia por que, naquele dia não tinha pressa, carcome… carcome… carcome…
Olhou pela janela e viu seus pequenos brincando. Quintal grande, casa boa. Tomou um grande e gordo gole de culpa. Era uma mulher de sorte. Era até pecado reclamar de algo. Por isso não reclamava nunca. Nunca mesmo. Acreditava que se engolisse os pensamentos ruins com o café preto, iriam dissolver no ar como a fumaça. Tomava muito café.
Carcome… Tirou a foto do bolso do avental. Chica pousou os olhos apertados sobre Ernesto, como era bonito o infeliz. Sempre alinhado. O trabalho exigia, dizia ele. Cabelo penteado à exaustão e imortalizado com Gomalina. O cheiro de colônia enchia qualquer ambiente, por maior que fosse. Não era só bonito, ele era bom, nunca havia levantado a mão para os filhos. Já com ela, ele tinha ficado nervoso, mas só uma vez. Ela, ligeira que era, havia aprendido a lição. Bem que minha mãe sempre dizia: “Desafiar homem nervoso é pedir para tomar bolacha!”. Nunca mais reclamou. Nunca mesmo. Serviu outra xícara de café.
Ernesto havia lhe dado nove filhos, todos vivos e com saúde. Eram tempos sombrios, não eram todas as famílias que tinham a graça de estarem inteiras. Depois da Gripe Espanhola, filhos vivos eram um milagre. Chica havia ficado tão impressionada com tantas mortes que jurava de pé junto: “Se fechar os olhos em noite quieta, se pode ouvir, ainda hoje, os lamentos das famílias enlutadas.” Ernesto achava bobagem. Não era para ficar pensando nisso. “As mulheres complicam tudo. Mulher não foi feita para pensar! Simples assim.”
Mas Chica pensou. Onde andará Ernesto? Já eram mais de quatro da tarde e nada dele. Podia sumir a qualquer hora do dia, mas a hora da soneca era sagrada. Começava a se preocupar. E assim foi passando o tempo. Tic.. tac.. cuco.. cuco… cuco.. cuco.. cuco… cinco horas. Colocou o casaco, pegou a sombrinha e a bolsa. “Catariiiiiina, cuida dos seus irmãos que eu já volto!”. Pois foi. Andou um bocado de tempo. Nada… Foi a todos os bares do bairro que Ernesto costumava frequentar. Nada… Andou em direção à praia. Nada… Começou a ouvir explosões ao longe. As ruas tomadas por militares armados. Em meio ao tumulto viu gente correndo. Gente sangrando. Gente gritando. Meu Deus! E as crianças sozinhas em casa. Apavorada, fez o caminho de volta.
Algum tempo depois, leu com muita dificuldade a manchete do jornal: “A Revolta dos 18 do Forte de Copacabana é só o começo”. Não soube nada mais, além disso. O homem sentado à sua frente no bonde guardou o jornal no bolso.
No dia seguinte a cabeceira da mesa ainda estava vazia. As crianças perguntaram. O pai tinha voltado para o trabalho, contou ela. Melhor assim. Não queria preocupá-las. Deve estar caindo de bêbado em algum canto da cidade. Tomava mais café. Como cuidaria de tantos filhos? E sem recursos? Mais um cafezinho para acalmar. Tinha ouvido alguém dizer que o preço do café iria subir. Deus me livre!
“ÔÔÔÔÔ de casa!” Palmas… palmas… palmas… Chica esticou o avental com as mãos, espichou o cabelo. Pousou a xícara na pia. “Pois não?” No portão um homem bem alinhado, de pasta de couro na mão, figura séria e de respeito. Homem educado. Explicou que buscava por Maria Francisca da Silva Ricci. Ela mesma! Não era portador de boas notícias. Podia entrar? Claro. Que ficasse à vontade. Explicou que, o senhor Ernesto, havia sofrido um acidente grave. Infelizmente não havia sobrevivido. Chica viu o mundo escurecer. Quando clareou, estava sendo abanada por Carlota. Um bando de olhinhos arregalados zelavam por ela. “Toma uma água com açúcar mamãe!” Catarina esticou o copo com uma mão enquanto segurava o irmãozinho no colo com a outra. O rapaz, esperava pacientemente pelo despertar de Chica, precisava terminar de dar a notícia.
Chica retomou o prumo. Esticou a saia. Arrumou o cabelo. Já estava bem. Vão cuidar de suas vidas crianças. Xô… xô… Espantou os filhos como quem espanta as moscas em dia de calor. O homem perguntou se ela estava bem. Estava sim. Foi só o choque da notícia. Precisava saber dos detalhes. Precisava entender. “A senhora quer mesmo saber?” Mas é cada uma, e como não? O rapaz lhe entregou o atestado de óbito onde Chica leu pausadamente, letra após letra: C-A-U-S-A D-A M-O-R-T-E: P-O-L-I… “Poli o que moço?” “P-O-L-I-T-R-A-U-M-A-T-I-S-M-O.” O rapaz soletrou pausadamente a palavra, sua voz baixa e pausada era daquelas que acalmam só de ouvir.
Chica nem sabia que se podia morrer de coisa tão estranha. Mas ela não entendia de muita coisa mesmo. O rapaz explicou que Ernesto havia sido atropelado. Ahhhhh, mas só podia ser o Ernesto mesmo. Não prestava atenção nem para atravessar a rua. O rapaz prosseguiu. Tirou o boletim policial da bolsa: No dia 22 de julho de 1922 o senhor Ernesto se encontrava no restaurante Mère Louise… (Abrimos aqui um parêntese para que o bichinho que carcome o pensamento falar com Chica: “Filho da puta! Morreu saindo do cabaré mais caro do Rio de Janeiro!”). Segundo os relatos de testemunhas, o homem deixou o local embriagado. Com o passo pouco firme, cruzou em direção à praia, sendo atingido por uma charrete, que, segundo relatos, perdeu o controle por conta do cavalo que se assustou com o barulho dos projéteis lançados no Forte de Copacabana devido ao levante. O Sr. Ernesto Martelli Ricci foi encaminhado para o hospital onde contraiu óbito às vinte duas horas do presente dia. Rio de Janeiro, 22 de julho de 1922. Assina: Delegado Manoel Cunha Filho.
Chica, não tinha palavras, muito menos pensamentos. Sua cabeça parecia um grande quarto onde o vazio se agarra ao vento para ter alguma companhia. Estava ali, com os olhos maiores que a cara. A boca parecia mais seca e murcha que de costume. Não era capaz de chorar. Não sabia o que sentir, por isso não sentia.
O rapaz falou que o corpo estava liberado para ser velado e que poderia cuidar de tudo se ela assim preferisse, entendia que naquele momento ela não tinha forças para correr atrás de formalidades. Chica se resumiu a um menear de cabeça afirmativo. Pois bem, então, o homem traria o corpo do marido e cuidaria da papelada. Ela só precisava cuidar dos convidados. O rapaz se despediu, colocou o chapéu e partiu. O vazio ainda morava na cabeça de Chica. Meu Deus! Como contar para as crianças? Precisava ser feito. Então, assim fez. Reuniu a tropa na sala. Pediu silêncio. Deu a notícia da melhor maneira que pode, se é que existe uma maneira melhor de dar essa notícia. Acudiu a quem precisou de colo de mãe. Catarina acudia os pequenos enquanto ela mesma não tinha consolo. Em algum momento a menina sentiu o abraço quente da mãe, fungou e no meio do fungo sentiu o cheiro acre de suor que só a sua mãe tinha, um sentimento de calma a fez reviver. Sentiriam saudade. Sempre sentiram. Seguiriam em frente. Sempre seguiam. Chica e Catarina cuidaram dos convites. Poucos amigos e familiares foram acionados através das pernas curtas, mas velozes dos pequenos. No final da tarde deram banho em todos, passaram a ferro as melhores roupas, arrumaram a sala de jantar, cobriram a mesa com uma coberta. Vai que o caixão arranha a madeira na mesa. Colocaram a melhor toalha de renda por cima. Assim fica bem bonito para quando as pessoas chegarem.
Velas, choros, tias vindas de lugares distantes, tios tão curvados que só viam a cera que cobria o chão. Não faltou nada. Nem corpo. Nem velas. Nem rezas. Lágrimas de sobra. No dia seguinte o corpo descansava dentro do caixão no Cemitério de São João Batista aguardando o sepultamento. Ernesto levava tudo que precisava. Foto da família entre as mãos cruzadas, coroas de flores assinadas e anônimas, choro sentido de muitos. Mas, de Chica, só levava o silêncio. Quando a cerimônia chegava ao momento derradeiro do abaixar do caixão, ouviram-se passos e choros novos. Duas mulheres com crianças pequenas acenavam para que o mundo parasse. Enquanto as crianças remelentas, de tanto choro, corriam em direção ao caixão. “Mas só me faltava essa!” o bichinho que carcome avisou a Chica que coisa boa não vinha. “Ernestooooooo!” Gritou a plenos pulmões a mais enlutada das duas mulheres. A situação que se seguiu foi digna de das novelas de rádio que só iriam ao ar no ano seguinte, mas que já davam pistas do entretenimento. Tinha de tudo, unhas na pele uma das outras, cabelos sendo arrancados, corpos rolando na grama tão emaranhados que mal se sabia quem era quem dentro do vestido preto, o auge foi quando um dos coveiros tropeçou, perdeu o equilíbrio e lá se foi Ernesto, corpo estatelado no chão, jazia torto, descabelado e sem dentadura no meio do passeio do cemitério. Esse foi o momento final. Aquele momento que faz com que os ânimos se acalmem a força do inusitado. O resumo do capítulo foi: Ernesto era pai de três famílias. Uma em cada canto. Uma de cada jeito. Uma de cada mulher. A conta de quantos filhos foi o advogado que fez: 9 + 5 + 3 = 17. Resultado obtido a pedido de Chica. Não quero crianças passando fome por conta de homem safado.
O rapaz que ajudou no velório era, na verdade, advogado de Ernesto havia muitos anos e fora chamado pelo moribundo ao hospital no dia do acidente. Ernesto havia lhe passado as instruções do que fazer com os bens. BENS… BENS… que bens? A palavra ecoava na cabeça de Chica. O único BEM que possuíam eram os filhos e a casa. Ernesto era gastador e nunca tinham sobras para acumular BENS. Fique tranquila, Sra. Francisca. O homem fez pular uma folha de papel para fora da pasta. Uma lista de duas páginas com a descrição dos BENS. Na vida de Ernesto não só as mulheres e os filhos eram muitos, os BENS também. Aliás, Ernesto sempre foi muito. MUITO mulherengo. MUITO safado. MUITO mesquinho. Mas, naquele dia, Chica conheceu um lado positivo de Ernesto, o que era coisa rara. Ele era, além de tudo, MUITO rico. O filho da mãe ganhava rios de dinheiro, era dono de uma fábrica de tecidos no interior. Chica, dentro do seu pequeno mundo, pensou que agora poderia fazer quantos vestidos quisesse sem ter que ouvir lamentações.
Com o tempo viu que teria muito mais além de vestidos. Cuidou dos filhos com a ajuda de Glória, a Governanta que contratou para dar paz para Catarina, a coitada precisava estudar. Aprendeu a cuidar da fábrica, não sabia que sabia aprender algo. Pois aprendeu. Empregou as outras esposas de Ernesto por um bom soldo. Assim garantiu o sustento de todos os filhos. Agora lia sem pausas, sorria com dentes, sorrisos esses vindos da dentadura que mandara fazer em São Paulo. Agora sabia sorrir.
Passado algum tempo, as três mulheres, em uma celebração íntima e solene, trocaram a inscrição da lápide de Ernesto por uma de bronze. Muito mais bonita. Essa era para durar para sempre. Em letras gravadas se podia ler: “Aqui jaz Ernesto. Pai medíocre. Marido filho da puta. Que descanse onde o Diabo permitir.” Brindaram ao momento. Brindaram aos filhos que já tinham. Brindaram a não ter mais um filho a cada ano. Brindaram ao futuro que agora se fazia presente. Gargalharam. Ousaram até mesmo sambar sobre o túmulo do falecido.
Ernesto a terra comeu. A lápide perdura como um aviso para TODAS AS MULHERES DE ERNESTOS.
Valeria Pagani



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